Resumo

O texto que se apresenta tem por objetivo a análise do episódio ocorrido no dia 12 de junho do ano de 2000 na cidade do Rio de Janeiro que ficou conhecido como o “sequestro do ônibus 174”. Todavia, sem desprezar a natureza da violência, o recorte é traçado na configuração de um espetáculo, na fisicalidade em si da cena e na produção da performance, do drama, mediado e reinventado pelos meios de comunicação presentes.

Palavras-chaves

Ônibus 174, Mancha, Espetáculo, Violência, Jardim Botânico

Abstract

The text aims to present the analysis of the episode occurred on June 12th of 2000 in Rio de Janeiro that became known as the “hijacking bus 174”. However, without disregarding the nature of violence, the outline is traced in the configuration of a spectacle, the physicality of the scene itself and the production of performance, drama, mediated and reinvented by the media present.

Key-words

174 bus, Stain, Spectacle, Violence, Jardim Botânico

 

 

Introdução

12 de junho de 2000: às quatorze horas e vinte minutos o ônibus da linha 174 que fazia o itinerário Central-Gávea ficou detido no bairro do Jardim Botânico na cidade do Rio de Janeiro por quase 5 (cinco) horas. Onze reféns estavam sob a mira de um revólver em punho por Sandro Barbosa do Nascimento[i], o “Mancha”. O episódio ficou conhecido como o “sequestro do ônibus 174”.

 

O texto tem por objetivo a análise do episódio através de um recorte que configure a presença de um espetáculo, na fisicalidade em si da cena e na produção da performance, do drama, mediado e reinventado pelos meios de comunicação presentes. Analisa-se as estruturas midiáticas envolvidas no episódio do sequestro, buscando compreender de que modo se constituem os processos em que a produção de sentidos e verdade se torna objetiva nas microrelações de poder, governo, Estado e Mercado.

 

Duas hipótese se apresentam a fim de delimitar o universo da análise, a primeira é tangente a dimensão do espetáculo e sua respectiva espetacularização, assim parte –se do princípio que o tratamento da mídia em torno do episódio produziu uma falseada percepção do fato, conduzindo-o ao arquétipo de um espetáculo e a espetacularização do mesmo, mas não de um problema social e político. A segunda se faz no campo da comunicação, apontando para o estreitamento das relações entre representação social e mídia, no alcance linear de novos imaginários sociais sobre jovens habitantes de comunidades periféricas

 

O texto ao encarar tal desafio chama atenção para a necessidade de fomento às políticas públicas de comunicação que adotem a criação de mídias alternativas na produção de novos imaginários sobre estes jovens. Estas mídias podem estar no próprio corpo, na música, nos grafismos, no cinema, além das categorias tradicionais e digitais.

Teorias

Os pressupostos de ordem/ desordem; purificação/ poluição estão presentes no debate numa configuração que se determina mediante a compreensão de duas teorias:

  1. Do “Sonho da Pureza”, elucidada por Zygmunt Bauman (1998)
  2. Da “máscara” traçada por Erving Goffman (1985)

 

Uma espécie de ironia do destino pode ser pensada na compreensão da teoria da “pureza” em contato com o nome do ator social em evidência, ou aquele que detém o papel principal do espetáculo – “Mancha” era a alcunha (na performance, o nome artistico) de Sandro Barbosa do Nascimento.

 

Como bem delimitou Bauman (1998) ao descrever o pensamento da esritora americana Cynthia Ozick, a “Solução Final Alemã”[ii] (Endlösung der Judenfrage) era uma solução estética, o dedo do artista eliminando uma mancha. Tal solução estética precisava outrora excluir o que não se encaixava naquela sociedade, o que perturbava a matiz ariana, ou simplesmente o que moralmente agredia a tranquilidade harmônica do ambiente da pureza, enfim o não-harmonioso. Assim, a prática anti-semita ou a judeofobia[iii] propunha um plano nazista de genocídio sistemático contra a população judaica durante a segunda Guerra Mundial, baseado numa dimensão estética, onde corpo, religião e etnia se entrelaçavam e encarnavam a imagem do político.

 

O caso de Sandro ou “Mancha”, ex-menino de rua, subcidadão, “ralé” (SOUZA, 2003), nas devidas proporções do Nazismo e sua “Judeofobia”, representou uma grande mancha no quadro harmônico da não compreendida diversidade da sociedade brasileira – logo, precisou ser eliminado de uma forma ou de outra[iv]. A distinção, todavia, ao que o episódio do sequestro, não planejado, do ônibus 174 nos traz é a produção imediata de um espetáculo, e consequentemente de uma espetacularização do mesmo episódio: se os fatos do Holocausto depois se traduziram em universo pop, indústria cultural, livros e tornou-se pilar em massa por adoção de roteiros de cinema, o sequestro do ônibus 174 era mediado em tempo real por câmeras de segurança da CET-Rio com imagens transpostas diretamente para os canais de TV. Tal simulacro (SODRÉ, 2002) propunha uma nova percepção da mancha, do “Mancha”, trazendo, por sua vez, a destituição da natureza de um crime, privado. O sequestro se tornava público e poderia ser reinventado a cada instante pelos seus atores, público e improvisos jornalísticos. Tinha-se do lado de fora, na rua em si, um espetáculo e do lado de dentro, em casa, a espetacularização do mesmo, ou um ´filme´ que depois virou filmes de novo. Aparece, dessa vez, a mobilização e a possibilidade de escolha do melhor lugar, ou do assento perfeito para assistir o espetáculo.

 

O episódio “174”, através de sua mediação reforça a presença do “terror”, superando a tenuidade entre a razão e o “medo”. A mancha é compreendida  pelos que estão “fora do lugar”, ou absolutamente “fora do lugar”, no caso do “Mancha”. Com isso apreende-se outras significações de como os meios de comunicação podem vir a sugerir a reconstrução de fatos para a produção da verdade, bem como de imaginários sociais positivos ou que somente reificam e naturalizam os estigmas da exclusão social brasileira como condição biológica, e, não social ou política. A teoria da “pureza” encarna a presença do ético, do estético, do histórico e do político evidenciando processos recorrentes de exclusão social, invisibilidade e violência. Nesta interface aparecem, ainda, as figuras do “monstro”, do “delinquente” e do “louco” analisada na obra de Michel Foucault em Os Anormais (2000), Vigiar e Punir (1977) e em A História da Loucura (1997).

 

Por outro lado, no centro da análise da teoria de Goffmann aparece a relação entre o conceito de “performance” e “fachada”. O autor coloca todos os elementos do atuar em consideração: um ator atua em uma posição onde há o palco e os bastidores; há relação entre a peça e a sua atuação; ele está sendo visto por um público, mas ao mesmo tempo, ele é o público da peça encenada pelos espectadores. De acordo com Goffman, o ator social tem a habilidade de escolher seu palco e sua peça, assim como o figurino que ele usará para cada público. O objetivo principal do ator é manter sua coerência e se ajustar de acordo com a situação. Isso é feito, principalmente, com a interação dos outros atores. O tema expressivo é a fundamental importância de possuir um acordo acerca da definição da situação em uma dada interação para manter a coerência. Nas interações, ou performances, as partes envolvidas podem ser público e atores simultaneamente; os atores normalmente atuam de forma que se sobrepõe a si mesmos e encorajam os outros, por diversos meios a aceitar tal definição. Assim, Goffman ressalta que quando a definição aceita da situação é desacreditada, alguns (ou todos) atores podem fingir que nada mudou, caso acreditem que isso é lucrativo ou manterá a paz. Por exemplo, quando uma dama está em um jantar formal (e quer causar boa impressão) e seu estômago ronca, os convidados que estão próximos a ela podem fingir que não houve nada e, com isso, ajudam a manter a pose. Goffman declara que esse tipo de atitude acontece em todos os níveis da organização social, dos mais pobres às elites. Como na “prostituta” de Baudelaire, o “Mancha” vende e é consumido ao mesmo tempo. Quem consome seu espetáculo é o público e quem o consome é a mídia, dissecando todas as possibilidades a que seu corpo possa servir enquadrado na melhor fotografia e ângulos das distintas câmeras.

 

O Espetáculo “174”

 

A grandiosidade dos edifícios, o cuidado em sua decoração, as entradas separadas de acordo com a condição social, o tamanho e forma da arena possibilitaram a realização de um número maior de combates e caçadas, além de produzir novas formas de comunicação visual. A tecnologia desenvolvida para a construção dos anfiteatros de pedra tornou possível a presença de um número maior de pessoas, expressando hierarquias e acirrando divergências.                                                                                (GARRAFFONI, 2005, p.113)

 

No século I d.C. as arenas na Roma Antiga eram totalmente tomadas por um público que adotava o espetáculo como prática de entretenimento, superação, força, mas também de poder e estratificação social. Enquanto a sobrevivência permeava a estrutura da luta, o público e o governo criavam condições especiais para a produção de novas relações sociais. Aquele que vencia era elevado porque matava o outro e o imperador com gestos podia levar a massa a uma efervescência completa. Mas, o que talvez passasse despercebido é que toda esta estrutura do espetáculo produzia aberturas significativas através de uma comunicação visual latente para a contemplação e ou reafirmação do poder absoluto do soberano. Por este caminho de reflexão, não se poderia mais pensar tais práticas apenas como fomento ao acúmulo de acéfalos enquanto o governo prepara seu massacre sobre a massa. Sobretudo, o que se operava nestas condições era o surgimento de uma estruturada rede administrativa. Mas, a luta acaba, alguém é morto e sangra, a selvageria toma conta do público que grita, aplaude e gesticula com seus corpos em descontrole da paixão submetida.

 

Século XXI – o palco não é revestido por terra, assim é no asfalto, justo no seio da cidade que o tablado em forma de estruturas metálicas e rodas (um ônibus) apresenta o espetáculo e os atores que também lutam por sobrevivência operam a lógica da representação. Como palco, faz-se de caixa de ressonância, é um instante ímpar de visibilidade, sobretudo, se o espetáculo é transmitido, e, não apenas apresentado. Como palco é necessário prevê o que se intensifica, o que sobra e o que se absorve. Mas,  diferentemente de Roma, o público em volta é tímido e se esconde entre árvores e carros, estando suspensos pela tecnologia do medo. Embora esse mesmo público, antes acovardado, tomará seu (outro) corpo, selvagem, de ação quando embalados pela narrativa externa ao evento. É a partir da mensagem provida pela TV que a produção da verdade se dá e produz um descontentamento coletivo, descontrole da paixão submetida outra vez na massa. Mas, ainda, diferente do outro espetáculo, as tecnologias de palimpsexto governam ora um lugar sem Estado, sem polícia, sem governo (ou com um Governo que não está no público, assim como faziam os imperadores na Roma antiga) e sem uma classe definida embalados pelo sentimento, vulnerável e intenso enquanto dure de ódio – pura proxemia, paixão coletiva, cimento de sociabilidade e condição de existência da “aldeia global” (MAFFESOLI, 1987). Esta “fúria do quase bem” é compartilhado por uma distinta moralidade; elevada ao lugar máximo do desejo de vingança; explode, depois mata.

 

Tal condição nos leva a refletir as relações do espetáculo em G. Debord, onde “o espetáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens” (p.14, 1997). É justamente esta relação que produz uma visão de mundo objetiva, uma produção da verdade. O espetáculo é longo e é necessário compô-lo em atos, alem do prólogo e epílogo também previstos. Neste texto ficaremos apenas com a confirmação do epílogo, sugerida a continuidade de uma seqüência de artigos assim definidos “A cidade apresenta suas armas” (o prólogo); “Ele vai matar geral às seis horas” (1º ato) e “Ele tem pacto com o diabo” (2º ato).

 

“Aplausos tardios”, o epílogo

Às dezoito horas e cinqüenta minutos no horário de Brasília o espetáculo acaba sem um fim propriamente dito – no momento em que Sandro Barbosa do Nascimento decide sair do ônibus tendo a presença da professora Geísa Firmo Gonçalves como escudo, encerra-se o espetáculo. Sandro, a mancha, o “Mancha”, o “bandido” do espetáculo representa em sua morte, depois da morte de Geísa, o alívio do “menos um” na sociedade, a sujeira que precisava ser limpa para que se recomponha mesmo que por breves instantes o harmônico, impossível harmônico. Geísa, antes a “mocinha”, outra vítima do Estado enfermo e apático, também morta por um policial é a mancha no Estado que não pode ser limpa, a não ser se deslocada a culpa de sua morte ou a sua mancha (de sangue) para Sandro, o “Mancha”. Os policiais foram absolvidos. Geísa não, Sandro não.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade, 1998

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

GARRAFFONI, Renata Senna. Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2005.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, Vozes, 1985.

FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2000

_________________ Vigiar e Punir: Petrópolis, Vozes, 1977

._________________ A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva: 1997

MAFFESSOLI, Michel. O Tempo das Tribos – O Declínio do Individualismo nas Sociedades de Massa. Rio de Janeiro: Forense, 1987

SODRÉ, Muniz. A antropológica do espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. BH: UFMG; RJ: Iuperj, 2003

 

NOTAS

[i] Sandro era um dos sobreviventes da Chacina da Candelária de 23 de julho de 1993.

[ii] O termo foi criado por Adolf Eichmann, oficial alemão de alta patente durante a Conferência de Wannsee (Berlim, Großen Wannsee em 20 de janeiro de 1942). A implementação da Solução Final é considerado um dos aspectos mais hediondos do Holocausto, senão a própria origem do Holocausto (ROSEMAN, 2003).

[iii] A definição nominal de ´antissemita´ apresenta uma determinada incongruência na sua formação: os ´semitas´, que segundo a Bíblia seriam os descendentes de Sem, filho de Noé, não só são apenas os judeus, mas também os povos árabes. Por estes motivos há autores como Gustavo Perednik que preferem utilizar o termo judeofobia, significando “aversão a tudo o que é judaico”.

[iv] Sandro foi morto asfixiado dentro da viatura por policiais após o incidente.